Friday, July 04, 2014

CEM ANOS DE CHARME CHULO CIRCENSE

Um de meus orgulhos – sei que já lembrei isso neste espaço, mas, como dizia Nelson Rodrigues, “tudo que se publica uma única vez continua inédito” – é ser autor da primeira grande pesquisa sobre música e circo em nível mundial, a pedido do Centro de Memória do Circo, primeiro órgão governamental brasileiro (pertence à Prefeitura de São Paulo) a recolher e preservar os chamados saberes circenses, localizado na Galeria Olido, bem em frente ao Largo do Payssandu. Tal pesquisa pode ser conferida no próprio CMC e, parcialmente, na bela exposição multimeios Circo Da Gente, em cartaz no SESC Santo André até 2 de novembro (detalhes aqui). E aqui vai uma parte desta pesquisa, interessante não só para fãs de circo, mas também de folclore musical (lembrando que minha garimpagem sobre circo na música brasileira está a caminho de virar livro, aguardem!).



"Chula" é palavra que, além de significar coisa reles ou sem valor, designa qualquer verso cantado e é o nome de um ritmo e de uma dança muito animadas e bem marcadas com zabumba, chocalho e triângulo, com harmonia e melodia tocadas com viola (antecessora de nossa viola caipira), sanfona e rabeca. A marcação da chula é parte da origem de quase todos os ritmos nordestinos e também aclimatou-se no Sul do Brasil, especialmente Rio Grande do Sul e Santa Catarina, fundindo-se ao lundu, ritmo ancestral do samba; esta fusão foi entusiasticamente adotada pelo circo brasileiro, surgindo as chamadas chulas-de-palhaço – a mais famosa é a muito cantada, citada e plagiada “Ó, Raia O Sol” (pelo menos é o nome que adoto para referência).

“Ó, raia o Sol! Suspende a Lua!
Bravos ao palhaço que está na rua!
Hoje tem espetáculo?
Tem, sim, senhor!
Hoje tem marmelada?
Tem, sim, senhor!
Hoje tem goiabada?
Tem, sim, senhor!
E o palhaço, o que é?
É ladrão de mulher!”

Ó, Raia O Sol” é uma espécie de “Rock Around The Clock” ou “Pelo Telefone” da música circense brasileira, espécie de marco zero ou pedra de toque de um gênero e grande sucesso desde sempre, inclusive em gravações, e que ajudou muito a definir e promover a música brasileira de circo. De Ó, Raia O Sol não sabemos a autoria, mas temos a data de seu surgimento, o ano de 1882, e a gravação mais antiga que descobri até agora é de 1912 – um ano antes do nascimento do grande cantor Carlos Galhardo, que gravou a citação mais famosa dessa chula, incluída na marchinha “O Palhaço, O Que É?”, clássico do carnaval brasileiro.

Como muitas canções populares, folclóricas ou não, Ó, Raia O Sol tem tido muitas variantes, intencionais ou não, por intenção paródica ou falha ao entender a letra original. Consta que a versão original diz

“Ó raio, ó Sol
Que esplende a Lua
Olha o palhaço
No meio da rua”

Carlos Galhardo cantou:

“Ó raio, ó Sol
Que eu sei da Lua
Traz o palhaço
Pro meio da rua”

Na bela história musicada infantil O Circo Cheio De Lua, lançada pela Editora Abril em 1982, temos esta versão simples, objetiva e conciliatória:

“Ôi, viva o Sol, ôi, viva a Lua!
Viva o palhaço no meio da rua...”

Esta é a versão usada em “Viva O Palhaço”, marcha de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira gravada por Dircinha Baptista em 1954. Treze anos depois, sua mana Linda Baptista soou bem menos conciliatória quando participou do Segundo Concurso de Músicas de Carnaval (promovido em 1967-68 pela TV Excelsior com a Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara) defendendo o samba-batucada “Palhaço”, de Getúlio Macedo e Jonas Garrett. O samba, uma das 36 canções selecionadas entre quase 3 mil, cita o palhaço no adjetivo (“você me fez de palhaço”) e começa assim:

“Eu vi o Sol
Brigar com a Lua
Olha o palhaço
No meio da rua”

Pois é, Linda e sua irmã Dircinha Baptista fizeram sucesso cantando em dupla e separadas – e cada uma gravou uma canção diferente que cita Ó, Raia O Sol.

Seria a expressão “suspende a Lua” uma alusão a iluminação artificial (a velas e lamparinas antes da energia elétrica) para a atuação noturna do palhaço? Certamente, outras paródias e versões incluíram “bravos ao velho que está na rua” e, alusão às reformas urbanísticas de Francisco Pereira Passos, prefeito carioca de 1902 e 1906, “bravos ao velho que alarga a rua”; realmente, Passos não era do tipo adepto a mudar tudo sem mexer em nada.

Há muitas outras variações da chula Ó, Raia O Sol conforme a época e a região do país, de pelo menos uma de suas três frases mais famosas: a introdução (“ó, raia o Sol” etc.), “hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor” e “o palhaço, o que é? É ladrão de mulher”. Muitas destas variações são adaptações profissionais que se “esquecem” (com ou sem aspas) de dar crédito ao folclore ou usam a chula sem muita imaginação. Temos também citações criativas em canções como “O Circo Chegou” de Jorge Ben Jor e “Sonhos De Um Palhaço” de Antônio Marcos.

E aqui vai minha primeira coletânea de gravações que citam a chula Ó, Raia O Sol, não só como aperitivo para a exposição Circo Da Gente no SESC Santo André, mas também minha pesquisa para o Centro de Memória do Circo e o livro que estou escrevendo sobre o circo e a música brasileira, previsto para o ano que vem ou o seguinte (vai ter detalhes e histórias sobre canções, artistas e sobre gravações, selos e capas de discos, cartazes de circo, fotos e muito mais, aguardem!).

Além de Linda e Dircinha Baptista gravando cada uma adaptações diferentes da chula Ó, Raia O Sol, temos nesta coletânea outras curiosidades como Ivon Cury e Claudia gravando arranjos diferentes da mesma adaptação, Pedro Celestino soando quase tão trágico quanto seu irmão Vicente, um registro do (ao menos para mim) misterioso palhaço (pernambucano?) Relin, uma marcha hoje obscura cantada por Mauro Rosas que é um protesto sutil contra a ditadura militar (“só na esperança de ver/o leão comendo o domador”) e uma prata da casa, composta por este que vos escreve agora em 2014 – completando e ultrapassando, assim, cem anos de presença da mais famosa chula de palhaços na MPB.

“Circo De Cavalinhos Na Roça” (autoria desconhecida) – artista desconhecido da Casa Faulhaber – 1912

“O Palhaço, O Que É?”(Alcebíades Barcelos “Bide”/Paulo Barbosa) – Carlos Galhardo – 1936

“História de Circo” (Edgar Barroso e Paulo McDowell) – Pedro Celestino – 1941

“O Circo Chegou” (Antonio Almeida/João de Barro/Alberto Ribeiro) – Sylvio Caldas – 1949

“Viva O Palhaço” (Haroldo Lobo/Milton de Oliveira) – Dircinha Baptista – 1949

“O Circo (Pregão Circense)” (Zé Dantas) – Ivon Cury – 1958

“O Palhaço, O Que É?” (Luiz Caetano/Luiz Queiroga/Relin) – Relin – 1960

“Palhaço” (Getúlio Macedo/Jonas Garret) – Linda Baptista – 1967

“O Circo (Pregão Circense)” (Zé Dantas) – Claudya – 1973

“O Circo Chegou” (Luiz de França/Vargas Jr./Álvaro Mattos) Mauro Rosas –  1973

“Sonhos De Um Palhaço” (Sérgio Sá e Antônio Marcos) – Vanusa – 1974

“Por Quê Choras, Palhaço?” (Expedito Batista) – Tião Motorista – 1978

“Hoje Tem Marmelada” – samba-enredo da Portela para o Carnaval de 1980 – 1979

“Ó Viva O Sol, Ó Viva A Lua” (folclore) – elenco da história musicada O Circo Cheio De Lua – 1982

“Pão e Circo” (folclore) – Maracatu Nação Pernambuco – 1993

“Canções De Palhaço” (folclore) – Companhia Carroça de Mamulengos – 1996

“Hoje Tem Espetáculo?” (folclore) – Parlapatões, Patifes e Paspalhões – 1999

“O Grande Circo Místico” (Beto Corrêa/Dico da Viola/Jefinho/Marquinho Índio) – samba-enredo da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel para o Carnaval de 2002 – Gravação: 2001

“O Circo” (adaptação de Tito Rolenberg) – Tito Rolenberg e Xote de Viola – c. 2006

“Meia Lua – Chula Dos Palhaços” (folclore) - Os Mensageiros Dos Santos Reis – 2010

“Serenata Chula” (gravação demo) (Ayrton Mugnaini Jr.) - Ayrton Mugnaini Jr. – 2014