SEU NOME EM LENDA SE TORNOU: CARLOS GONZAGA (1924/2023)
Mesmo muito antes de falecer em 25 de agosto, o
cantor e compositor Carlos Gonzaga já merecia lembrança e homenagens. Até onde
sei, ele é uma das grandes personalidades do rock brasileiro que ainda não têm
pelo menos um livro sobre ele; aqui fica, pois, a sugestão, e saibam quantos e
quantas este blogue virem que me proponho a colaborar pelo menos com a
discografia e com algumas observações como as que se seguem. Sim, muita coisa
escrita por aí sobre Carlos Gonzaga (inclusive a Folha de S. Paulo afirmou que sua carreira começou com a versão de "Diana"!) faz lembrar o bordão da locutora Renata Silveira:
“Olha o chutiiii!” (Sim, teremos também um pouco a dizer e ouvir sobre CG e futebol.)
NA VELHA MINAS ELE NASCEU...
Nascido
em 10/2/1924, Carlos Gonzaga viveu até os 99 anos e sete meses, caso raro de
tamanha longevidade no rock - e também prova de que rock não é "coisa de
jovem" e não tem idade, pois ao se tornar grande sucesso com
"Diana" ele já tinha 34 anos (e era mais velho que Elvis Presley e
Chuck Berry!). Desde
o século 20 os dois maiores centros de produção e divulgação de cultura de
massa no Brasil são as cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, e Carlos Gonzaga, mineiro de Paraisópolis, começou a se projetar em Sampa, a ponto de constar em muitas
reportagens de diversas publicações como “cantor paulista”...
Revista do Rádio, 1955
Correio da Manhã, 4 de dezembro de 1955
E o que Carlos Gonzaga tem a ver com o artista
inglês David Bowie (além de ambos terem feito muito sucesso na gravadora RCA)?
Ambos mudaram de nome para evitarem confusão com artistas homônimos que
alcançaram antes o sucesso. No caso do “Camaleão”, nascido David Jones, o
“culpado” foi Davy Jones, o simpático baixinho sorridente dos Monkees; já o
cidadão José Gonzaga Ferreira tornou-se Carlos Gonzaga ainda em 1954, com cada
vez mais reportagens combinando elogios com o alerta “não confundir com o
cantor e acordeonista pernambucano Zé Gonzaga (1921/2002)”, inclusive irmão dos
também sanfoneiros Luiz Gonzaga e Severino Januário. Por sinal, CG pode ser
também considerado precursor dos muitos Carlos da jovem guarda. (Afinal, a
jovem guarda começou quando o rock ganhou jeitão brasileiro, com cada vez mais repertorio
composto no Brasil, justamente em 1958, embora o rotulo “jovem guarda” tenha
surgido nos anos 1960 e o programa de TV desse nome tenha durado de 1965 a
1968).
Revista do Rádio, 1 de setembro de 1953
Revista do Rádio, 9 de setembro de 1952
NÃO
TE ESQUEÇAS, MAS ANTES APRENDAS, MEU AMOR
A página Discogs é boa, mas é sempre bom verificar
alguns detalhes. Segundo ela, o primeiro disco de Carlos Gonzaga foi um 78 RPM
para o pequeno selo Moema com “Cabocla Morena” e “Milagre De Santo Antônio”,
lançado em 1950. Só que, como vimos mais acima, CG adotou este nome artístico
em 1954. Portanto, de duas uma: ou este Carlos Gonzaga é um homônimo ou a data
não é 1950 e sim de 1954 em diante. Algumas hemerotecadas revelam que o disco
saiu em 1955, provavelmente em março, data da notícia que encontrei. (1)
O Governador, 31 de março de 1955
“Cabocla Morena”, ou “Cabocla Bonita” conforme
este jornal (2), tinha pedigri: seu co-autor, o paulistano Arlindo Pinto, emplacara
sucessos como “Chalana” e “Segue Teu Caminho” (3). Mas este disco, apesar da
(hoje aparentemente) mínima repercussão, parece ter ajudado Carlos Gonzaga a
ser notado pela gravadora RCA, que não perdeu tempo: seu primeiro disco na nova
casa foi gravado em junho de 1955 e lançado no outubro seguinte. (4), com uma
versão do clássico da guarânia “Anahi” e um tango, “Perdão de Nossa Senhora”;
certamente, o bom cristão Carlos Gonzaga repetiu o procedimento de seu disco na
gravadora Moema, cujo lado-B era a valsinha “Milagre de Santo Antônio”.
ONLY
YOU PODE FAZER-ME FELIZ
Com toda a certeza, além de um livro, Carlos
Gonzaga merece uma coletânea de toda a sua carreira, pelo menos três CDs com 20
ou mais faixas cada, de todas as gravadoras por onde passou (lembro-me agora de
que elas incluem a Philips, Polydisc e Mickael), como prova de que ele foi bom cantor e, apesar de primeiro ídolo negro do rock
brasileiro (logo em seguida surgiriam os Golden Boys e Baby Santiago), não
cantava somente rock. Seu repertorio faz crer que suas maiores predileções
pessoais eram ritmos brasileiros; pena ele não ter conseguido (ou tentado) o
mesmo feito de sua conterrânea Wanderléa, que, estereotipada no inconsciente
coletivo como “cantora da jovem guarda”, gravou em 2022 (pelo selo SESC) o (altamente
recomendável) CD Wanderléa Canta Choros, como acerto de contas com o passado, e
mostrando que a fase “Ternurinha” representava apenas uma fração de seu
potencial. Suponho que Carlos Gonzaga gostaria de ter feito pelo menos um álbum
inteiramente de sambas, guarânias e outros ritmos que não fossem aquelas
versões de Anka, Sedaka, Elvis e outros colegas estrangeiros da RCA (5). Mas,
pelo menos, a RCA permitia que quase todos os lados-B dos avulsos trouxessem canções
em ritmos brasileiros ou rocks compostos no Brasil.
Talvez
a menos boa gravação de Carlos Gonzaga seja justamente “Oh! Carol”. Ele, como
lembramos, era bom cantor, e seu timbre e energia me sugerem um Agnaldo Timóteo
mais jovial, mas geralmente mais adequado a gêneros brasileiros; seu dueto
consigo mesmo em “Oh! Carol” pode ser considerado percursor do breganejo,
inclusive pela sofrência da letra (por sinal, a letra original de Howard
Greenfield também é uma sofrência só). E a crítica musical, por estas amostras,
também não gostou. “Louco
Amor” ele, segundo a revista Radiolândia, “nos parece mais um gago do que
propriamente um cantor”. Se gravações como “Oh! Carol” pressagiam o breganejo e
os versos “only you pode fazer-me feliz/only you é tudo aquilo que eu quis”
anteciparam-se ao idioma portinglês falado no Brasil no século 21 (“ganhe cashback”, “onda
de hate” e por aí vai), “Falta Você”, composição de Sérgio Reis gravada em
1966, anuncia o brega – mas seu lado-B mostra um Carlos Gonzaga atento para
novidades em um arranjo iê-iê-iê/pilantragem do bolero “Maria Elena” de Lorenzo
Barcelata.
Correio da Manhã, 16 de novembro de 1959
Correio da Manhã, 16 de novembro de 1959
O gosto de Carlos Gonzaga por música sertaneja e a
ambição comercial da RCA encontraram um belo meio-termo na música sertaneja
estadunidense, ou seja, a country music, a partir da gravação de “Eu Canto
Assim” e, em seguida, do tema do seriado de televisão Bat Masterson e belas
versões como “Os Cavaleiros Do Céu” e “Vale Do Rio Vermelho”.
LAMENTOS E ALEGRIAS DE UM CABOCLINHO
Mesmo após se notabilizar como cantor de rock em
1958, Carlos Gonzaga continuou gravando ritmos brasileiros. Algumas marchinhas
carnavalescas que gravou merecem um parágrafo à parte.
Algumas das marchas carnavalescas lançadas por CG
fizeram muito sucesso e até se tornaram clássicos da MPB. Muitas marchinhas,
soltas por salões e ruas afora, fazem tanto sucesso que, além de se tornarem clássicos
da MPB, entram para o inconsciente coletivo e quase ninguém se lembra de quem
as lançou. (Quantas pessoas se lembram de que, por exemplo, foi Jorge Goulart
quem lançou “Cabeleira Do Zezé”, idem Marlene e “Roubaram A Mulher Do Rui”, ou
os Quatro Ases E Um Coringa e “É Com Esse Que Eu Vou”?) Carlos Gonzaga tem pelo
menos um exemplo assim, “Coração De Jacaré”, lançada em 1968 e onde seus
autores J. Nunes e Dom Jorge transformam a novidade dos transplantes de coração
em piada de sogra.
Outro exemplo é “Me Leva Pra Casa, Me Leva”,
composto pela cantora Neyde Fraga em parceria com Domingos Paulo e Jotagê e
lançado em 1974, e uma literal carnavalização do hit brega desse mesmo ano
“Cada Dia Que Passa”, composto por Cacá e Levy e cantado por Luiz Carlos Clay.
“Tomara Que Caia”, de Palmeira (sim, o grande
compositor e produtor de discos (8) e J. M. Alves, lançada em 1956 e sucesso no
carnaval desse ano, não se limita à insinuação sexual sugerida pelo título e
tem uma letra inteligente; até se perdoa a pronuncia “tomará”.
Podemos dizer o mesmo de “Comendo De Colher”, de
Henrique de Almeida e José Roy e lançada em 1961; quem espera a óbvia rima com
“mulher” ficará agradavelmente decepcionado(a).
Outras são notáveis mais pela curiosidade que por
qualidade musical. Um exemplo é “Marcha Da Torcida”, da já famosa dupla J. Nunes
e Dom Jorge, lançada em 1969 como faixa de abertura do LP Carnaval 70 da RCA. À
primeira vista, a canção parece se referir à iminente Copa do Mundo; mas uma audição
(por sinal, quantas pessoas ouvem as gravações sobre as quais comentam?) sugere
que o tema é futebol doméstico, a não ser que o vocativo “alô, amigos” seja alusão
muito sutil ao México, local da Copa de 1970, remetendo ao famoso desenho
animado da Disney de 1942, Alô, Amigos! (originalmente intitulado Saludos, Amigos!). Confiram
a letra na integra:
Olelê, olelê, olalá
O meu time vai botar pra quebrar
Um, dois, três
Um, dois, três
Alô, amigos, seu time é freguês
“No Fundo Do Pito”, marcha da famosa e já mencionada
dupla Palmeira e J. M. Alves, além de composição interessante, tem a distinção
de estar no primeiro LP brasileiro de 12 polegadas da RCA, Carnaval RCA Victor,
lançado em janeiro de 1957. Mas na época houve quem comentasse que o sucesso da
composição dependia de quantas pessoas soubessem o que significava a expressão “no
fundo do pito”...
Outra marchinha gravada por Carlos Gonzaga e que
dependia muito da capacidade de captar sutilezas tem a ver com futebol, mas
infelizmente apenas no titulo, “Córintia Ó Mengo!!! (Teste São Tomé)”, composta
por Jotagê, Julio Carlos e B. Barrella em 1971 e que levou muita gente
alvinegra e rubro-negra a ficar cinza de decepção ao ver que a marchinha era
uma versão muito sutil ou pouco pensada de marchinhas de duplo sentido como “Cabeleira
Do Zezé” ou “Vai Ver Que É”: “Pelo
sim ou pelo não/eu vou pagar pra ver/Será que ele é? Será que ele não é? Eu vou
fazer o teste São Tomé/Pra ver se é ou se não é/eu vou fazer o teste São Tomé.” (Não me perguntem como seria esse teste...)
Carlos Gonzaga, ao contrário do mencionado conterrâneo
Agnaldo Timóteo, era apolítico, mas não escapou de gravar coisas como “A MarchaDo General”, dos já citados elementos J. Carlos e Jotagê, lançada em 1973 e cuja
letra na integra diz, inclusive cooptando o jingle de um inocente analgésico:
“General, general/é melhor e não faz mal/mas que beleza/é a minha terra/tem
amor e paz/e não existe guerra”.
Diario da Noite, 1 de março de 1973
Mas em 1968 ele mandou o frevo tropicalista e existencialista “É Proibido”
(de Elzo Augusto, Gentil Castro e Dom Jorge): “é proibido proibir/o que tiver
que vir/deixe vir, deixe vir.”
PEQUENA AMOSTRA DE GRANDES ENCONTROS
Carlos
Gonzaga cantou o único rock que conheço do não roqueiro Adoniran Barbosa,
"Vem, Amor", lançada no LP O Cantor Hit-Parade em 1962 e composta em
parceria com Geraldo Blota (sim, autor, com Joseval Peixoto, da marchinha
"Ói Nóis Aqui Tra Veis", a melhor canção de Adoniran que ele não
compôs).
Revista do Rádio, 16 de março de 1957
No ano anterior, 1961, Carlos Gonzaga ganhou uma
ilustre colega de gravadora: a escritora Carolina Maria de Jesus (6),
revelando-se como compositora inspirada e versátil de sambas, marchas,
toadas-baiões, valsinhas e outros ritmos brasileiros e cantora eficiente; em
setembro desse ano ela lançou na RCA um LP com o mesmo título de seu primeiro e
mais famoso livro, Quarto De Despejo; os únicos defeitos desse álbum são ter
sido o único registro fonográfico de Carolina e não mencionar quem nele tocou
além do arranjador Chiquinho de Moraes. A Revista do Rádio noticiou que Carlos
Gonzaga gravou uma composição de Carolina, mas este que vos escreve não
encontrou tal gravação; talvez alguém na gravadora ou na revista tenha
confundido as informações, embora o disco inclua um coral masculino (os
Titulares do Ritmo?) e vozes que talvez incluam seu colega e conterrâneo.
Revista do Rádio, 2 de setembro de 1961
Outro dueto bem promissor que, pelo jeito, a RCA
tentou mas não conseguiu armar foi de Carlos Gonzaga e a cantora Alaíde Costa,
que começou a discografia gravando sambas-canções, boleros e bossa-nova de 1957
a 1961. (Não entendi o aposto “El Presidente”, mas sei que na foto Alaide e CG
estão com Aerton Perlingeiro, aquele do programa Almoço Com As Estrelas, e a
legenda cita Ramalho Neto, ...)
Radiolândia, 27 de junho de 1959
Mas uma cantora da RCA com quem realmente Carlos
Gonzaga compartilhou uma canção foi Cinderela, embora compartilhando apenas
como repertório. Explicarei. Ele e ela gravaram “You Are My Destiny”, sucesso
de Paul Anka, só que CG trouxe mais uma daquelas versões de Fred Jorge, “Você é
Meu Destino”, e ela gravou em inglês mesmo, só que na RGE; os dois 78s saíram quase
juntos, o dele em junho de 1958 e o dela em julho. (7)
Radiolândia, 20 de novembro de 1954
Lembremos também que Carlos Gonzaga gravou composições de Ivan Pires ("Lamento De Um Caboclinho"), Artulio Reis ("E Eu Chorei (Sniff)") e pelo menos duas versões feitas por Mario Albanese, "Rapaz Do Banjo" ("Banjo Boy") e "O Tangaço" ("Il Tangaccio").
NÃO PODE SER O FINAL
Uma de suas ultimas gravações foi um compacto com duas versões: “Recordações”, versão de “Living Alone” dos Everly Brothers, e “O Teu Amor”, versão de “Shine On”, sucesso da banda estadunidense LTD, lançado pelo selo Mickael em 1981; o disco foi produzido por Mickael, ex-cantor dos anos 1970 e um dos fundadores da empresa MCK de duplicação de CDs.
Algumas das versões que ele gravou podem ser conferidas aqui. E encerramos este breve apanhado deixando este belo texto sobre Carlos Gonzaga do blogue Brazilian Rock de Carlos Maximus.
Notas:
(1) Parece que a única publicação a ter dado atenção à gravadora Moema (situada no Cambuci, embora o nome sugerisse o vizinho bairro de Moema) foi o jornal O Governador. “Amargurado” é sucesso de Carlos Gardel em versão da dupla Brinquinho e Brioso, e este disco tem numero de catalogo 5002, denotando que estranheza pelo disco ser de cor branca, fugindo do já tradicional preto em discos não infantis, mostra que a gravadora Moema foi vanguardista, antecipando o atual fascínio por LPs coloridos.
O Governador, 9 de dezembro de 1954
(2) O jornal O Governador foi uma espécie de sucessor de Bom Humor, importante revista humorística dos anos 1940, cuja equipe incluiu Pagano Sobrinho, Walter Forster e Zé Fidelis.
(3) “Cabocla Morena”, de Arlindo Pinto, foi gravada também por Nardo e Nardinho pelo menos três vezes, num 78 RPM no selo Caboclo da Continental, num compacto duplo na gravadora RCB Barretos e abrindo o LP A Paz No Mundo (Ipanema Discos, 1995) – se bem que ainda não tive acesso à gravação de Carlos Gonzaga para verificar se é a mesma canção ou outra com o mesmo título.
(4) Falamos sobre Carlos Gonzaga ter sido precursor dos muitos Carlos da jovem guarda. E este prenome parece ter sido muito apreciado pela gravadora RCA, que também lançou discos de Carlos Galhardo, Francisco Carlos e Carlos Nobre.
(5) O próprio Elvis, na segunda metade dos anos 1950 e nos anos 1960, foi tratado pela matriz da RCA como galinha-dos-ovos-de-ouro, podendo escolher muito pouco de seu repertorio e quase sempre à mercê da gravadora e do empresário...
(6) Citámos Adoniran e Carolina; pois bem, ela foi homenageada por ele no hoje injustamente obscuro samba “Carolina”, parceria com Marcos Cesar (redator da TV Record e parceiro de Adoniran em outras composições), lançada pelo ainda mais obscuro grupo Sambaquatro em 1967.
(7) Cinderela (nascida Luiza Trevisan em 1930) era vedete, garota-propaganda e até cantora, e ela entrou para o livro que estou escrevendo sobre a Disney e a música brasileira devido a seu nome artístico ter sido inspirado na adaptação disneyana da famosa história infantil.
(8) Diogo Mulero, dito Palmeira, foi importante para toda a MPB, inclusive a música sertaneja, e vale lembrarmos o livro Palmeira, O Caipira Genial Que Mudou A Música Sertaneja de Danilo Daros e Walter de Sousa, edição independente de 2022.
THIS MAN HE TWEETS TONIGHT: DAVE DAVIES VERSUS ELON MUSK
This is a bilingual post; first in English, then in Portuguese.
Este texto é bilingue, primeiro em inglês, depois em português.
I have been studying the English language since March 1970, and I think I have a potential student, born in June 1971; guess who he is.
While you're guessing, here we go: do you know the word “kink”? It has several meanings: loose lint on ropes or clothes (“iron out the kinks”); something that looks odd or weird; something perverted, risqué or pornographic but still soft or subtle enough to be socially acceptable (“kinky sex”); and it's also the name of one of the most influential rock bands since the 1960s, The Kinks (those ackwainted with me know that this is the English band that speaks to me the most, but it doesn't matter now).
Many new people use some gimmick to gather attention from the public and the media in order to get success. The Kinks' early managers had the idea of promoting them as mildly perverted, and they went along with it. In the very first press feature about the band, on the 22th of February 1964 issue of the Melody Maker newspaper (reproduced below), Ray Davies, leader and guitarist, declared that he and Dave Davies, his brother and the other guitarist in the band, were “sisters”; and there are promotional shots of the Kinks dressed in leather jackets and brandishing whips (an example is in the sheet music above — and, yes, they look like circus lion tamers). It didn't take long for the band and management to realise that such boutique SM was rubbish, and they came up with something better, those hunting jackets. But many Kinks songs mention or suggest sex, orthodox or less so (“Lola”, “Monica”, “Mirror Of Love”, “The Way Love Used To Be”, “Out Of The Wardrobe”, “Animal”). This story also brings to mind another Kinks song, “Destroyer”: “Paranoia, the destroyer”, or rather a dominatrix, a song that is very appropriate for this time when, as the Rolling Stones said, “it's all secrecy and no privacy” and, due to the misuse of the “politically correct” stance, more and more people are offended by less and less. You may know the precept “freedom of speech, just watch what you say”; well, currently the virtual society is so sensitive and easily offended that care must be taken when mentioning “v i 0 l e n c e”, “s e x”, “ d i s g r a c e”, “T r u m p” and even, lo and behold, the Kinks.
Well, have you guessed who could be the English student of mine I mentioned? Yes, that's him, Elon Musk, co-owner of Twitter and a bunch of other companies, including aptly named ones like Neuralink and Boring. Let's see how the Kinks got into this story (in addition to Musk being born shortly after the
Percy movie soundtrack was released), which can be read about
here. With no immediate plans to put out new or unreleased recordings, the surviving members of the original Kinks lineup – the aforementioned Davies brothers and drummer Mick Avory – decided to commemorate the band's 60th anniversary with a retrospective compilation, entitled
The Journey, and Dave started spreading news about it on Twitter. Well, that network was programmed to interpret “kink” as perversion, and Dave received a warning: “We put a warning on this tweet because it might have sentitive content.” Upon receiving this, Dave sent a message to this could-be English student of mine: “Dear @elonmusk, please stop putting warnings on everything from ‘the Kinks’. We are just trying to promote our Kinks music.” Shortly thereafter, Dave, who, besides being absolutely right, has been speaking English since before me, gave Elon Musk his first lesson: “The Kinks are a brand name. We have been called the Kinks since 1963." Then Musk or someone on Twitter took a hint and posted a message: “After review, we removed the sensitive content warning from one or more recent Tweets. Thanks for helping us catch that mistake.” Aw, how lovely can a social network be?
Or could it? Dave received a screenshot from someone else who tweeted, "Though they said the warning was removed on appeal... it's still there." So Dave almost wrote a song lyric: “That's impossible. The word 'robot' should be banned. We have robots running our lives. At least I'm a Kink and not a f*cking robot." Another Kinks fan quoted the title from the 1981 Kinks album: “Elon Musk, give the people what they want!” And Dave quipped: “Give people what Elon Musk wants.” Isn't he lovely – Dave, of course.
"Telepathy/for you and me/we can be/a unity", sang Dave in the 1980s. Indeed, telepathy is better than Twitter psychopathy...
And on to the Portuguese version:
Eu estudo o idioma inglês desde março de 1970, e acho que tenho um aluno em potencial, nascido em junho de 1971; adivinhem quem é.
Enquanto vocês adivinham, vamos lá: conhecem a palavra “kink”? Tem vários significados: fiapos soltos em cordas ou roupas (“iron out the kinks”); algo que pareça estranho ou esquisito; algo pervertido ou pornográfico mas ainda suave ou sutil o bastante para ser aceito socialmente (“kinky sex”); e é também o nome de uma das mais influentes bandas de rock desde os anos 1960, The Kinks (quem me conhece sabe ser essa a banda inglesa que mais me diz, mas isso não vem ao kauso).
Muita gente nova usa algum chamariz para público, imprensa e sucesso. Os primeiros empresários dos Kinks tiveram a ideia de promovê-los como suavemente pervertidos, e eles toparam. Logo na primeira matéria sobre a banda, para o jornal Melody Maker em 22 de fevereiro de 1964 (reproduzida acima), Ray Davies, líder e guitarrista, declarou que ele e Dave Davies, seu irmão e o outro guitarrista, eram “irmãs” (sim, “we’re sisters!”); e há fotos promocionais dos Kinks vestidos com jaquetas de couro e brandindo chicotes (um exemplo está na partitura mais acima - e, sim, eles parecem domadores de circo). Não demorou para a banda e os empresários perceberem que esse sadomasô de butique era bobagem, e descobriram algo melhor, aquelas jaquetas de caça. Mas muitas canções dos Kinks mencionam ou sugerem sexo, ortodoxo ou nem tanto (“Lola”, “Monica”, “Mirror Of Love”, "The Way Love Used To Be", “Out Of The Wardrobe”, “Animal”). O tema desta publicação remete também a outra canção dos Kinks, “Destroyer”: “Paranoia, a destruidora”, antes fosse uma dominatrix, canção esta bem apropriada para esta época em que, já diziam os Rolling Stones, “tudo é segredo e nada é privacidade” e, devido a mau uso da postura “politicamente correta”, cada vez mais as pessoas se ofendem com menos; parafraseando Millôr Fernandes, o que é espúrio se torna moralidade e vice-versa. E se antes já havia o preceito “freedom of speech, just watch what you say”, atualmente a sociedade virtual está tão sensível e melindrada que é preciso cuidado ao se mencionar “v i 0 l ê n c i 4”, “s e x 0”, “d e s g r a ç a”, “C o l l o r” e até, vejam só, os Kinks.
Pois bem, já adivinharam quem poderia ser o meu aluno de inglês que mencionei? Sim, ele mesmo, Elon Musk, co-proprietário do Twitter e de um monte de outras empresas, incluindo algumas de nomes bem adequados, como Neuralink e Boring. Vejamos como os Kinks entraram nesta história (além de Musk ter nascido logo após o lançamento da trilha do filme Percy), que pode ser conferida aqui. Sem planos imediatos de lançar gravações novas ou inéditas, os membros sobreviventes da formação original dos Kinks – os citados irmãos Davies e o baterista Mick Avory – resolveram comemorar os 60 anos da banda com uma coletânea retrospectiva, intitulada The Journey, e Dave divulgou isso no Twitter. Pois bem, essa rede estava programada para interpretar “kink” no sentido de perversão, e Dave recebeu um aviso: “Colocamos um alerta neste tweet porque ele pode ter conteúdo ofensivo.” Ao receber isso, Dave disparou uma mensagem a este meu quase aluno de inglês: “Prezado @elonmusk, pare, por favor, de colocar alertas em tudo que venha de ‘the Kinks’. Só queremos divulgar nossa música dos Kinks.” Pouco tempo depois, Dave, que, além de estar cheio de razão, fala inglês desde antes de mim, deu a primeira aula a Elon Musk: “Os Kinks são uma marca registrada (“brand name”). Nós usamos o nome Kinks desde 1963.” Aí Musk ou alguém no Twitter se tocou e publicou uma mensagem: “Após verificação, removemos o alerta de conteúdo ofensivo de um ou mais tweets recentes. Agradecemos por ter nos ajudado a descobrir esse erro.” Mas não é muita fofura para uma rede social só?
Até poderia ser, se Dave não tivesse recebido de outra pessoa twitteira uma captura de tela com uma mensagem: “Disseram que o alerta foi removido... mas ele continua lá.” Então Dave quase compôs uma letra de música: “Isso é impossível. A palavra ‘robô’ deveria ser proibida. Robôs estão comandando nossas vidas. Pelo menos eu sou um Kink e não uma p* de um robô.” Outro fã dos Kinks citou o título do álbum Give The People What They Want: “Elon Musk, dê às pessoas o que elas querem!” E Dave ironizou: “Dê às pessoas o que Elon Musk quer.” Esse, sim, é um fofo – Dave, claro.
"Telepathy/for you and me/we can be/a unity", cantou Dave nos anos 1980. Realmente, telepatia é melhor que a psicopatia do Twitter...
ARTIGO BASEADO EM “CAUSOS” REAIS: LEOPOLDO REY (1944/2023)
Não
só a Áustria, a Grécia e a Bélgica tiveram seus reis Leopoldos; o Brasil também
teve. Ou melhor, teve, tem e sempre terá, vivo e presente em sua obra e trabalho de pesquisa, na
lembrança de quem conheceu a pessoa franca, sincera, irreverente e bem humorada
e no exemplo para quem mais se aventurar no rádio, jornalismo e produção
musical. Sim, falamos de Leopoldo Rey, falecido de problemas cardíacos em 20 de
janeiro, e este artigo é uma breve recolha de sua obra, inclusive como meu
amigo e parceiro em emissoras de rádio, jornais, revistas e até festivais de música.
UM
POUCO DO COMEÇO
O
cidadão Francisco Leopoldo Santos d’Arienzo surgiu em 17 de agosto de 1944 e
logo revelou vocação para música, não tanto tocar ou cantar, mas sim como
escritor e radialista. “Logo fiquei famoso como ‘o cabeludo da cidade’”; não
demorou para Leopoldo contrair a síndrome de Francisco Alves, Luiz Gonzaga e
Roberto Carlos, sendo chamado de “Rei do Rock” e gostando a ponto de se crismar
“Leopoldo Rey”, com a distinção do “Y”. Ele chegou a me presentear com alguns
de seus discos dessa época, como este compacto de John Lennon da foto acima. Logo
ele criou este carimbo, promovendo seu nome de guerra e usando as iniciais de
seu nome completo:
F L S D
REY
Sim,
as iniciais dispostas desta forma lembram uma sigla psicodélica muito famosa, e
a intenção de Rey foi essa mesma...
DISCOTECA
REAL
Muitas
das melhores famosas ou obscuras gravações do rock tornaram-se conhecidas do
publico brasileiro graças a Leopoldo Rey e seus programas radiofônicos, como Rock
Sandwich, Reynação e Momento do Rock; ele merece ser lembrado
e divulgado ao lado de Big Boy, Jacques Kaleidoscopio, Kid Vinil e outros
mestres.
Muito
provavelmente você tem algum disco em que Rey participa de alguma forma. Um
exemplo é a bela coletânea From 64 At 70, reunindo quase todos os maiores
sucessos da primeira fase dos Kinks (1), e cujo texto da contracapa é dele.
Temos também Teen Spirit, CD (com uma pequena tiragem em LP) inspirado no
programa deste nome apresentado e produzido por Rey na FM 97, incluindo Okotô,
Sepultura e Golpe de Estado, além de um texto do próprio Rey.
E
há pelo menos uma gravação onde Rey aparece como compositor: “Mexa-Se, Boy”,
versão do clássico do blues “Mannish Boy” de Bo Diddley, em parceria com
Oswaldo Vecchione (embora não creditada como versão), contrabaixista e líder da
banda Made In Brazil, e lançada no álbum Pirata II do Made em 1986. (2)
Além
disso, a voz de Rey pode ser ouvida em pelo menos um disco: o CD anexo a uma edição
especial sobre Raul Seixas da revista Shopping Music, lançada em maio de 1998. Este disco inclui gravações inéditas de Raul e entrevistas dos anos 1980 por
Marilia Gabriela, Pedro Bial, Kid Vinil, Valdir Montanari, André Barbosa Filho
e, claro, Leepoldo Rey, os quatro últimos numa bela entrevista coletiva para o
programa Rock Show da Excelsior AM em 1981. (Ah, sim: o texto desta revista é
deste que vos escreve, e o disco quase incluiu a famosa confissão do plágio de “Rock
Das Aranhas”, mas ficou de fora devido à qualidade sonora inferior às outras.)
Agora,
Rey também chegou a ser vendedor de discos, ao menos pelo pouco tempo, na
segunda metade dos anos 1980, que durou a loja Rebel Songs, na galeria Gemini,
a que liga a Alameda Santos à Avenida Paulista. A Rebel Songs foi uma loja relâmpago,
mas deu tempo para um “causo” que Rey me narrou. Foi a época do disco Yauaretê
de Milton Nascimento, e a gravadora enviou um belo pôster promocional.
Adivinhem quem foi visitar a loja e se encantou com esse pôster: Geraldo
Vandré. Muita gente diz que ele finge loucura para não ser perturbado por simpatizantes
da ditadura militar, e este “causo” talvez demonstre essa tese. Segundo Rey,
Vandré viu o pôster e seguiu-se um diálogo assim:
-
Vende esse pôster pra mim?
-
Vender? Que nada, é material promocional da gravadora, eu te dou de presente e
depois pego outro.
-
Não quero de presente, faço questão de pagar!
-
Ah, deixa de bobagem, eu te dou de presente!
-
Não, eu quero pagar!
Ficaram
nessa até que Rey capitulou:
-
Tá bom, eu te vendo por preço tal.
E
Vandré respondeu:
-
Ah, muito caro, não quero!
E,
antes de ir embora, ainda colocou uma bela cereja no bolo:
-
Me diz onde eu posso expor esse pôster e cobrar ingresso!
FAMILIA
REAL
Tive
com Leopoldo Rey a mesma surpresa agradável que quando conheci, por exemplo, o músico
Mano Del Picchia e a cantora Cris Aflalo – a mesma surpresa que, por exemplo,
Chico Buarque causou em quem conhecia seu pai Sérgio Buarque de Hollanda e seu
parente Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira. Fiz “uma pergunta que você deve
ouvir umas quatro vezes por dia” e me responderam: Mano é neto de Menotti Del
Picchia e Cris é sobrinha do jornalista Armando Aflalo. Pois bem, ao saber que o
sobrenome de Leopoldo Rey era D’Arienzo, perguntei: algum parentesco com o
grande maestro e compositor argentino Juan D’Arienzo (1900/1976)? A resposta
foi um “sim” mais que entusiástico, acompanhado de um “causo”. Parentes de Rey
foram à Argentina e lá pegaram um táxi; o motorista era sociável e, conversa
vai, conversa vem, ele, ao saber que estas pessoas passageiras eram D’Arienzo e
parentes do maestro, ficou tão feliz que, vejam só, fez questão de não cobrar
pela corrida. (3) Inclusive, fui encontrado por um LP de Juan d’Arienzo que até
traz “Rey” no título – Juan era conhecido como “El Rey del Compás”, rei do
ritmo, e “Rey del Tango” – , e eu disse a Rey que iria presenteá-lo com este
disco em nossa reunião seguinte, que acabou não acontecendo...
Outro
toque de realeza foi o apelido de Christina Queen dado à saudosa primeira
esposa de Rey, Maria Christina Fagundes. E imaginem a Rainha Elizabeth II
atendendo ao telefone dizendo “aqui é a mãe do Charles”. Pois bem, Vicentina d’Arienzo
(1913/1996) foi grande atriz, professora de educação física e nada menos que a primeira
mulher a apitar um jogo de futebol no Brasil (Palmeiras, então ainda Palestra
Italia, contra o Esporte Clube Santana, da cidade de Itapeva); em 1939 casou-se
com o “oriundi” Luiz d’Arienzo Neto, com quem teve duas filhas e um filho. Pois
bem, em algumas vezes em que telefonei para Leopoldo Rey, ela estava lá e atendeu;
eu perguntava quem era e ela, tão mãe-coruja quanto simpática, respondia: “É a
mãe do Rey!” Comentei sobre isso com o filhão e acrescentei: “Se ela é a mãe do
Rey, então é a Rainha-Mãe!” Ele e ela gostaram tanto que, quando ela faleceu,
Rey homenageou-a em sua coluna na revista On & Off dizendo: “A Rainha-Mãe
se foi.”
PARCERIAS
REAIS
Tive
a honra e prazer de trabalhar com Leopoldo em muitas de minhas atividades:
jornalista, radialista, produtor de eventos e até jurado de festival – além, é
claro, de participar de seu programa de rádio e vice-versa.
O meu primeiro contato de que me lembro com Rey foi exatamente em 2 de agosto de 1984,
quando toquei com uma de minhas bandas, Galileu, no saudoso bar Albergue, de
propriedade do também saudoso Lelo Cadillac, da banda Coke-Luxe, na rua Rui Barbosa. Rey
estava na plateia, e esta foi sua impressão do Galileu (uma canja de quatro canções
(4) ): “Algumas letrinhas eu achei interessantes.” Mal sabia eu que dali a um
ano e meio meu programa Rádio Matraca encontraria na FM 97 uma Pasárgada e lá
eu seria vizinho e amigo de Rey. (5)
Na
virada dos anos 1980 para 1990 eu, já tendo me afirmado como jornalista,
compositor, músico e radialista, arvorei-me em outra função: produtor de
eventos, no Espaço Persona, onde praticamente residi de 1988 a 1993. Dois dos
eventos que produzi no Persona, em parceria com Carmen Flores, cantora e proprietária
do local, foram duas edições do Festival Persona de Música, e num deles
Leopoldo Rey nos honrou como integrante do júri. E na mesma época, em março de
1990, eu e ele fomos jurados do quinto Festival de Música da ADC Eletropaulo;
confiram estas amostras da cobertura do evento pelo tabloide da empresa, Notícias
ADC Eletropaulo. (Leopoldo é o último à direita na foto; notem a presença de outras pessoas grandes parceiras, como o músico Johnny Boy.)
Trabalhámos juntos no Jornal da Tarde (6), de onde saímos em abril devido aos problemas financeiros
causados pelo Terraplano C*ll**. Inclusive, participamos da cobertura do primeiro
festival Hollywood Rock, em 1990. E segue abaixo uma pequena batalha de
confete, tirada do JT de 11 de outubro de 1989 e da revista On & Off,
edição 8, de 1993. (Sobre essa história de Aiatolá, explicarei no item
seguinte.)
REAL
HUMOR REAL
Ninguém
da FM 97 escapou da galhofeira Rádio Matraca em nossos quase dois anos na emissora. Sidnei Moreno Lopes, mais que excelente imitador – do nível de um Geraldo
Alves, com todo o respeito às novas gerações – , era um camaleão, e ele glosou
Leopoldo Rey e seu programa Momento Do Rock como “Leopardo Gay e o Momento do
Loki”. Rey, ele mesmo bem humorado, divertia-se com as gozações e as revidava.
O Momento Do Rock era um programete onde Rey mencionava e comentava alguma data
importante na história do rock e tocava uma gravação pertinente. Um dia Rey
visitou uma gravação da Rádio Matraca e acabou participando; Sidnei começou a
imita-lo inventando na hora uma data como “em 26 de julho de 1865”, e Rey
atalhou: “Morreu a mãe do Sidnei!” Laert Sarrumor, pego de surpresa, até chamou
o intervalo antes da hora... O programa foi ao ar no sábado seguinte e ninguém
se divertiu mais do que, adivinhem, a mãe de Sidnei Lopes, que, muito viva e muito
bem, veio nos dizer “então vocês me mataram!” Realmente, chiste trocado não dói...
Um
belo dia apareci na 97 com cabelo curto, barba grande e roupa escura, e, mal
cheguei, Rey disparou: “Olha o aiatolá!” Sim, era época de mais um entre tantos
lideres detestavelmente radicais e extremistas, o Aiatolá Khomeini. Então eu
mesmo aproveitei a deixa: “Aiatolá Mugnaini!” E Rey e outras pessoas na 97 seguiram
me chamando de Aiatolá mesmo anos após eu ter saído da emissora, em 1989. O
jeitão de adorável rabugento bem-humorado era excelente assunto para desenhos
como este logo acima que fiz em 1994 para a revista Dynamite, inclusive trocadilhando
com o filme disneyano O Rei Leão. No ano seguinte compus um tema no estilo NWOBrHM (New
Wave Of Brega Heavy Metal), “Reyclamão”, e a primeira reação de Rey foi: “Pô,
Ayrton, pára de falar que eu só reclamo, minha família já está me enchendo o
saco!”
E
QUEM é REY NUNCA PERDE A MAJESTADE
Sei
que esta breve recolha é apenas uma amostra da obra de Leopoldo Rey, mas muito
mais pode ser lido em locais como Maquiavelli, Olhar Dinâmico, Startrips e um dedicado ao proprio.
E
desde já me candidato a escrever um livro sobre nosso velho homem do rock em
Atibaia e no mundo. “Brincadeira?!”
(1) Num belo exemplo de “supercompensação” e de “antes
tarde do que nunca”, os primeiros sucessos dos Kinks, quase todos inéditos no
Brasil, deixaram de sê-lo 25 anos depois, e em dose dupla: o ano de 1989 começou
e terminou com nada menos que duas coletâneas brasílicas da banda, esta From 67
At 70, lançada em março, e uma Greatest Hits da RGE, em setembro. A primeira
nasceu de licenciamento das gravações da Movieplay portuguesa para a Brasidisc
(que, para idealizar o titulo em inglês, fez um acordo não intencional com
Tarzan, disso nosso querido Leopoldo Rey não teve culpa, embora ele mesmo tenha
escrito erroneamente o sobrenome do contrabaixista original dos Kinks, Pete
Quaife, como “Quaiffe”); já a RGE havia obtido licença diretamente da gravadora
inglesa PRT, então a detentora destes fonogramas. Curioso é estas duas
coletâneas totalizarem 25 faixas mas terem apenas oito em comum, nenhuma sendo “Apeman”,
falha de ambas as coletâneas, e a RGE se esqueceu ainda de outro grande hit, “Tired
Of Waiting For You”...
(2) O Made In Brazil lançou simultaneamente dois LPs
ao vivo, Pirata I e Pirata II, reunidos num CD simples, intitulado simplesmente
Pirata, em 1997 – e desta vez creditando “Mexa-Se, Boy” como versão de “Mannish
Boy”.
(3) Pois é...
Quantas pessoas brasileiras demonstram tamanho orgulho de celebridades suas
conterrâneas antes de nestas ficarem procurando e enfatizando erros ou defeitos?
(4) A formação do Galileu nesse show era Fabian Chacur, vocal; Wagner Amorosino, teclado, violão e vocal; "Lord" Mauricio Bardella, contrabaixo; Ademir "Bonitão" Benedicto, bateria; e Ayrton Mugnaini Jr., arranjos, guitarra e vocal. Essa canja foi gravada, e uma amostra vai aqui.
(5) E "o bom filho à casa torna"; surgido na USP FM em 1985, o programa Radio Matraca passou pelas FMs 97 e Gazeta, voltando à USP em 1997 - pois é, a volta pode comemorar jubileu de prata.
(6) O que falta para o lançamento digital do acervo do Jornal da Tarde e, por sinal, da Folha da Tarde?
SÃO PAULO: BEM MAIS QUALIDADES QUE DEFEITOS
Neste aniversário da cidade de São Paulo, resolvi homenagear a ela e também a uma ilustre pessoa paulistana que, infelizmente, não alcançou esta data: a jornalista, editora e poetisa Thais Matarazzo, também emérita pesquisadora e memorialista de musica e cultura brasileiras e portuguesas e dona da Editora Matarazzo. Tive a honra e prazer de participar de muitos livros desta editora, inclusive Vamos Falar De São Paulo II?, lançado em 2016; segue abaixo meu texto para este livro - este, aliás, merece ser lido inteiro e procurado na editora ou em sebos.
SÃO PAULO: BEM MAIS QUALIDADES QUE DEFEITOS
Por Ayrton Mugnaini Jr.
Vou começar confessando: amo São Paulo e nela ter nascido – mas nem sempre a amei. Dos 12 aos 22 anos morei nas menores e mais tranquilas Sorocaba e Lins, e desenvolvi uma antipatia pela metrópole: eu me queixava de muita poluição, trânsito sempre parado (ainda não havia metrô nem corredores de ônibus e veículos viviam trombando com dinossauros – sim, havia até um tipo de ônibus enorme apelidado de “dinossauro”)... Quando minha família retornou a Sampa em 1979, resisti o quanto pude, inclusive indo todo fim de semana a Sorocaba para tocar com bandas que eu havia formado. Até que em 1980 acabei me enturmando com pessoas de Sampa, passei no exame para jornalismo da Cásper Líbero, e voltei a ser paulistano de vez, embora falando e pensando com sotaque do “interiorrr”. E desde então me identifico sempre com a última cena do filme O Cangaceiro de Lima Barreto: “Nasci aqui, vou morrer aqui, esta é a terra do meu sertão!” (A autora deste e outros diálogos do filme é a grande escritora cearense Rachel de Queiroz, que logo voltará à nossa conversa.)
Sim, Sampa não é cidade para corações fracos, mas quem não gosta e quiser gostar acaba se acostumando e gostando. Basta lembrarmos duas homenagens musicais do tipo “morde-e-assopra” de pessoas “estrangeiras” sobre a cidade, com alguns comentários meus. Uma é “São São Paulo” (ou “São Paulo, Meu Amor”) do baiano Tom Zé, composta em 1968:
São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
São oito milhões de habitantes (1)
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito
São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo o Centro da cidade
Armadas de rouge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
Um palavrão reprimido
Um pregador que condena
Uma bomba por quinzena (2)
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito
São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
Santo Antonio foi demitido
Por ministros de Cupido
Armados da eletrônica
Casam pela TV
Crescem flores de concreto
Céu aberto ninguém vê
Em Brasília é veraneio
No Rio é banho de mar
O país todo de férias
E aqui é só trabalhar
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito
São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
(1) 8 milhões de pessoas já era muita gente – um décimo da população brasileira – em 1968, imaginem os 12 milhões de 2016...
(2) A censura obrigou Tom Zé a substituir “bomba” por “festival”, mas na gravação ainda se ouve um coro dizendo “bum!”
E em 1971 o cantor e compositor carioca Marcus Pitter fez sucesso com o charleston-rock “Esta Cidade É Um Monstro”, de sua autoria:
Há vinte e poucos anos
Eu nasci neste lugar (1)
São Paulo, minha terra,
Meu chão, meu lar
Aqui eu nasci,
Me criei e cresci
E ao passar do tempo
Pouco a pouco me perdi
Multidão, poluição, construções,
Jatos cortando o espaço sem fim
Multidão, poluição, construções
A Natureza já morreu aqui
Esta cidade é um monstro
Mesmo assim, gosto daqui
(1) Tudo bem, o carioca Marcus Pitter tem licença poética para dizer em letra de música que nasceu em Sampa, do mesmo modo que o ítalo-paulista Mário Zan compôs “Sou Gaúcho”...
E por falar em licença, peço-a para trazer uma letra de canção de uma pessoa paulistana – por sinal que eu mesmo, e esta canção foi lançada em 2004. A gravação pode ser ouvida aqui, e a letra segue abaixo:
NÓS QUE AMAMOS SÃO PAULO
Ayrton Mugnaini Jr.
Eu me lembro da infância que passei
Lá no bairro de Santana
Um dia eu cresci, mas antes me casei
Mudei pra Vila Mariana
Hoje moro na Vila Prudente
Cada bairro de São Paulo
É uma cidade diferente
Mas eu sempre dou um jeito
A cidade inteira cabe
No lado esquerdo do meu peito
Dizem que esta cidade é um mundo
De tão imensa e multiforme
Mas eu penso diferente, que o mundo
É uma São Paulo enorme
Esta cidade é um gigante, um Frankenstein (1)
De concreto, ferro e sangue
Nem direi mais o que tem
Pelo que ela tem de mau eu até choro
Mas pelo que tem de bom
É nela mesmo onde eu moro
Eu já morei em mil bairros diferentes
Mas o lugar onde eu mais vivo
Não é em Santana ou Vila Prudente
É nos pontos de coletivo
Ainda tem muito problema, é verdade,
Mas nós que batalhamos
E amamos esta cidade
Podemos dizer sem medo e sem pausa:
Se em São Paulo dá pra viver
É também por nossa causa
(1) Licença poética até para mim mesmo: eu sei que Frankenstein não é o nome daquele Borba Gato estrangeiro e sim do cientista que o criou, mas tudo bem.
São Paulo até que não se sai mal para uma cidade que tanto cresceu em tão pouco tempo (“a cidade que mais cresce no mundo”). Em 1916 todo o Estado de São Paulo contava 3,3 milhões de almas, e a capital não ia muito além do Pátio do Colégio. O Brasil praticamente se limitava ao Rio de Janeiro e à Bahia, o resto era interior, e o “Estado Bandeirante” era pouco mais que um corredor para transporte do ouro vindo de Minas Gerais e um quintalzão ótimo para se plantar café... Realmente, se o Rio de Janeiro é nossa Princesinha, nossa “Cinderela”, São Paulo se revelou bom exemplo de “Patinho Feio”.
Mas já naquele tempo São Paulo se afigurava como uma boa opção para se viver melhor neste Brasil. Um bom exemplo é o romance O Quinze de Rachel de Queiroz, publicado em 1930, sobre a grande seca que assolou o sertão nordestino em 1915, e o personagem Chico Bento decide se mudar para São Paulo: “Lá não tem sezão, nem boto, nem jacaré... É uma terra rica, sadia... [...] Terra de dinheiro, de café, cheia de marinheiro...”
Sem dúvida, boa parte do crescimento e diversidade de São Paulo deve-se à grande imigração de gentes de todas as partes do Brasil e do mundo, tal como aconteceu com sua irmã Nova Iorque – e com a bisavó Roma. Bem resumiu Mário de Andrade em 1926: “São Paulo é capaz de se apropriar de tudo o que as tendências, movimentos e invenções estrangeiras podem dar para riqueza e liberdade da gente.” E eu gosto tanto desta “terra do meu sertão” que até contribuí com um grande paulistano, meu filho Ivo.
Maior população italiana fora da Itália, idem japonesa fora do Japão, primeira cidade brasileira adotar códigos de endereçamento postal (sim, CEP) e de discagem telefônica direta à distância (DDD), primeira a ter bilhete único para transporte e órgão governamental especialmente para saberes e atividades circenses (o Centro de Memória do Circo)... E sempre há o que se dizer de uma cidade como São Paulo ,Sampa, Pauliceia, a Terra da Garoa... Após começar confessando, termino sentenciando: São Paulo me parece estar de acordo com o que sempre digo: “Cultiva tuas qualidades de modo que teus defeitos nem contem.”